terça-feira, 19 de junho de 2007

ARTE - ARTISTA

"Pois a beleza, Fedro, grava bem isso, apenas a beleza é simultaneamente divina e visível; ela é, portanto, o caminho do sensível, ela é, meu pequeno Fedro, o caminho pelo qual o artista alcança o espírito. Mas tu crês, meu querido, que aquele que se encaminha ao espiritual pela via dos sentidos pode algum dia alcançar a sabedoria e uma verdadeira dignidade viril? Ou antes acreditas (tu és livre para decidir) que este é um caminho atraente, conquanto perigoso, na verdade um caminho equívoco e pecaminoso que necessariamente conduz ao erro? Pois é preciso que saibas que nós, poetas, não podemos percorrer o caminho da beleza sem que Eros se interponha, arvorando-se em nosso guia; sim, ainda que sejamos, a nosso modo, heróis e guerreiros disciplinados, somos como mulheres, pois a paixão é nossa sublimação, e nosso anseio não pode deixar de ser amor - para nossa satisfação e para nossa vergonha. Vês agora que nós, poetas, não podemos ser nem sábios nem dignos? Que fatalmente incorremos em erro, que fatalmente permanecemos devassos e aventureiros do sentimento? A maestria de nosso estilo é mentira e estupidez; nossa fama e respeitabilidade, uma farsa; a confiança depositada em nós pela multidão, altamente ridícula; a educação do povo e da juventude pela arte, um empreendimento temerário que devia ser proibido. Pois, como pode servir de educador quem traz em si um pendor inato e incorrigível para o abismo? Bem que gostaríamos de renegá-lo e adquirir dignidade, mas para onde quer que nos voltemos, lá está ele a nos atrair. É assim que renunciamos, por exemplo, ao conhecimento analítico, pois o conhecimento, Fedro, não tem dignidade nem rigor; ele é sábio, compreensivo e indulgente, não tem firmeza nem forma; simpatiza com o abismo, ele É o abismo. A este rejeitamos, pois, decididamente, e nossa única aspiração passa a ser então a beleza, o que quer dizer simplicidade, grandeza, um novo vigor, a espontaneidade reconquistada e a forma. Mas forma e espontaneidade, Fedro, levam à embriaguez e à cobiça, arriscam levar um coração nobre a cometer um atentado atroz contra o sentimento, atentado que sua própria exigência de austera beleza repudia como infame - também elas conduzem ao abismo. Digo que elas nos conduzem, a nós poetas, para o abismo, pois não conseguimos elevar-nos, mas apenas exceder-nos. E agora eu me vou, Fedro. Quero que fiques aqui e só quando já não me avistares mais, só então, parte também."*

*Thoman Mann - Morte em Veneza

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