quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

EM FAVOR DA MENTIRA, CONTRA A VERDADE!



Hoje perdeu-se o valor da mentira. A verdade, ou a ânsia por proclamá-la, parece ser o fim de um arco-íris cujo trajeto até o pote de ouro é formado pelos ladrilhos das certezas. O almejado tesouro, nesse caso, é um falso diploma – veja a ironia – assinado com tinta transparente. Quanto mais se tenta chegar a verdade última dos fatos menos próximos estamos de compreender qualquer coisa. Há aqueles que advogam pela verdade no campo do jornalismo onde a informação é elevada ao status de ferramenta da clarividência, capaz de arrancar a ignorância dos desinformados. Contra estes há não muito o que argumentar, embora particularmente tenho a tendência a dar mais crédito às informações escondidas nas entrelinhas de uma estória de um livro do que nas lentes assépticas dos repórteres televisivos. O que quero aqui é deslocar a polêmica para o território em que a mentira, até pouco tempo atrás, trajava as vestes de protagonista. Falo da arte, em especial da arte dramática.

A origem da palavra "ator" carrega uma tradução esclarecedora: vem do grego hipócrates que, por sua vez, aproxima-se do nosso conhecido verbete hipócrita. Hipócrita, ainda segundo a definição do dicionário, indica aquele sujeito que finge ser o que não é. O ator, portanto, segundo a definição, é, por natureza, um grande mentiroso. Será isso verdade nos dias de hoje? Parece que não, a idéia de que um ator tem como ofício praticar o "mentir" virou mentira, não é mais verdade. As explicações para tal mudança de eixo são muitas, uma delas é justamente a fixação que a imagem do "real" – produto da tecnologia moderna – despertou nas consciências. O que antes era sugestão hoje é constatação, a penumbra deu lugar aos holofotes, a dúvida não tem espaço quando o assunto é perscrutar a veracidade dos fatos, a maquiagem agora é a da cara limpa. Mas como não tenho como pretensão chegar a verdade alguma, volto novamente meu foco para o ator, o mentiroso que não mente mais. Triste verdade!

Se pensarmos que no passado o teatro guardava atrás de suas cortinas todo o mistério hoje ultrajado pelos bastidores da fofoca dos programas de TV, teremos uma pista para entender o que pode ter acontecido. O ator que antes existia como representante de uma personagem hoje virou personagem de si próprio. O "esse sou eu" tornou-se mais importante do que vestir por convicção a máscara da mentira. Tudo começou com a câmera, o olho da verdade. A televisão e o cinema conferiram à dramaturgia um empobrecimento irremediável, sem volta.

E eis que me deparo com a reportagem da revista Veja sobre a preparação de elenco para filmes brasileiros que tem em Fátima Toledo o guru do momento. Fátima afirma categoricamente que a sua terapia – não há palavra melhor – consiste em fazer, custe o que custar, o "ator" arrancar as máscaras para viver à flor da pele as emoções da personagem. Ou melhor, personagem? O que é isso? Em outras palavras, o ator de Fátima Toledo não mente, ele é: "esse sou eu". Assim, o mistério do faz-de-conta – desde sempre a matéria prima da arte dramática - vira um capricho nada producente. Mais fácil é procurar um analfabeto para interpretar o analfabeto, um galã para interpretar o galã e um vilão para ser o ... bingo: o vilão! Antes que algum defensor de Stanislavsky queira me crucificar em praça pública com a bíblia do Método em punho, bom que se diga que o diretor russo em nada se aproxima das técnicas de hipnose da nossa coach brasileira. A personagem existe para Stanislavsky como um processo de construção consciente e, se a aproximação do intérprete para com a personagem – independente de como é feita – é confundida com um estado de ausência do ator isso se dá por uma má compreensão do sentido do trabalho imaginado por Stanislavsky. Mais uma vez o cinema aqui tem culpa.

Puxar os cabelos e gritar de pernas para o ar até exaurir as forças do pretenso "ator" de fato pode funcionar no cinema e na televisão. Se para a câmera o que conta é o momento único da captação, e o que está em jogo é o resultado pretendido pelo diretor, a terapia hipnótica dá conta do recado. Agora se estamos falando de teatro, e é aí que se encontra o verdadeiro terreno do ator –o artista está longe de ser uma marionete à serviço de uma idéia de verdade instantaneamente registrada e logo abandonada. Ao contrário, ele é um artesão que tem a mentira como instrumento de trabalho. A máscara é a ferramenta que possibilita aproximar o espectador de uma experiência de vida, construída na relação entre ator e público. E pelo fato de ser compartilhada ao vivo torna-se um produto da memória, nunca descartável.

Hoje, a verdade como instrumento de expressão na arte dramática produz um casting esvaziado de sentidos. Quando se reivindica o foco para o "eu-ator" (ego) em detrimento da busca pela possibilidade do "outro-personagem" (construção) o que se tem é uma verdade mentirosa, a de que o que se faz é arte. A indústria da imagem nos apresenta uma seleção repetitiva de eus-personagens que não podem ser outra coisa do que são: galãs, vilões, donzelas, enamorados.... representantes de uma vaidade individual muito distante do construir e compartilhar da arte. E a mentira vai mais além. Imaginar que a máscara afasta a sinceridade do artista é tão absurdo quanto afirmar que todos nós somos constituídos por alguma identidade original, pura e possível de ser alcançada. Reconhecer a própria precariedade e a complexidade de nossa natureza imperfeita deve ser a premissa de qualquer artista. A vaidade de um eu uno e perfeito é vazia de sentidos porque não é uma verdade humana e, portanto, torna-se desinteressante. A máscara atrai porque é a metáfora da mentira, de possibilidades e não de certezas, da incompletude que faz parte do cenário da vida e onde nós somos as personagens protagonistas.

Escrito por Francisco Carvalho. 01.01.09

2 comentários:

  1. Chico
    Palavras de Dostoiévski:

    "Os Demônios ou os possessos":

    "Meu amigo, a verdade verdadeira é sempre inverossímil, você sabia? Para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira."

    Ab

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  2. Ei!
    Obrigado pelo comentário... tirei "Os Demônios" da minha estante, agora virou o próximo da lista!

    abração e esteja sempre a vontade para visitar e comentar meu blog!

    Chico

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