sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

UMA RESPOSTA A DIOGO MAINARDI - AFINAL DE CONTAS, QUE CAPITU É ESSA?


Depois de ler a crítica que Diogo Mainardi redigiu em referência a minissérie Capitu, dirigida por Luiz Fernando Carvalho, algumas questões despontaram da minha ingênua sinapse cerebral. Vamos a elas:

Qual é o papel de um artista? Obedecer regiamente ao consenso do "aceitável" – de modo a satisfazer o que já é conhecido previamente – ou se propor ao enorme risco de traduzir algo pelo viés de uma experiência pessoal e, portanto, intransferível? O que está em jogo aqui não é a busca por uma originalidade celestial só alcançada por alguma espécie de gênio romântico - Luiz Fernando Carvalho é por demais inteligente e sensível para reconhecer que a premissa de qualquer grande artista é o respeito pela sua própria ignorância.

O resultado da Capitu de Carvalho passa longe da fanfarronice barata advogada pela nobre retórica de Mainardi, isso porque o intuito de levar Machado de Assis ao grande público não tem como objetivo – esse sim pretensioso e arrogante – reproduzir o pensamento Machadiano ao incorporar nos atores o bolor das páginas manuscritas do nosso Bruxo do Cosme Velho. E como se isso fosse de alguma forma possível! Esse "desrespeito" pela literatura de Machado, que pode ser lido nas entrelinhas do texto de Mainardi, é absolutamente inverossímil quando o assunto é criação artística. Arrisco-me a dizer que o único e verdadeiro compromisso de um artista para com seu autor é justamente o de abandoná-lo tão logo seja possível, garantido que a futura obra seja uma leitura pessoal e não uma réplica perfeitamente adequada aos museus de arqueologia.

Volto a dizer, esse é o único caminho possível para a verdadeira arte: propor diálogos – mesmo que absurdos e improváveis – a partir do que já existe. Esse é o caminho da inteligência, generosidade, sensibilidade. Se Luiz Fernando Carvalho, aos olhos acurados de Mainardi, elegeu Dick Vigarista como protagonista, ponto para o diretor que por princípio fugiu da tentação de encontrar com Bentinho folheando as páginas de Dom Casmurro.

Onde está Hamlet? Aliás, a pergunta é outra... Hamlet existe? Evidentemente que seria um atestado de burrice imaginar que um bom ator – ou diretor – pensa em decifrar a personagem shakespeareana em algum modelo formatado pelo próprio autor da tragédia. Uma vez compreendidas as complexidades da personagem, Hamlet habita e configura corpo em qualquer época, situação ou contexto. Transportar essa leitura pessoal – individual e solitária - para as entrelinhas da obra de Shakespeare é o que configura o ofício de um artista de talento. Fosse de outra forma, só existiria UM Hamlet, UM Bentinho, UM Dom Quixote. Todos peças mortas e enferrujadas em museus. Arte é vida, movimento, diálogo, possibilidades.

Mainardi, na sua crítica a Capitu, é moralista e esse é mais um dos equívocos quando o assunto é arte. Quem disse que Luiz Fernando Carvalho quis elencar as discussões políticas de Machado de Assis em sua adaptação televisiva? Quem disse que existe uma forma de traduzir Machado? Quem disse que há qualquer outra pretensão na cabeça do diretor que não seja somente a de contar uma estória? Quem disse que há qualquer outro motivo na criação artística que não seja o de oferecer um interlúdio de prazer aos olhos viciados dos telespectadores? Para que tentar transformar arte em uma cartilha de acertos e equívocos? Agindo dessa forma perde-se o que há de mais precioso na criação: o prazer de fazer, o prazer de ver, o prazer de não servir para nada a não ser para o prazer.

Eu fico com a "Corrida Maluca" de Luiz Fernando Carvalho e espero ansioso pelo próximo ano para ver quais outros carros improváveis serão alinhados na linha de largada do diretor. Onde essa corrida vai dar? Essa é uma questão que não me interessa nem um pouco e, ao que parece, é matéria somente do ranço viciado de críticos intelectuais.

E foi dada a largada!

Escrito por Francisco Carvalho. 27.12.08
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Segue a reflexão crítica feira por Diogo Mainardi a minissérie Capitu:


Machado de Assis é Bentinho. Nós somos Capitu. A analogia é simples: nós abastardamos a obra de Machado de Assis. No centenário da morte do escritor, Dom Casmurro e seus outros romances perderam qualquer sinal de paternidade machadiana. Eles parecem gerados por Escobar, o amante de Capitu.

Luiz Fernando Carvalho, diretor da série televisiva Capitu, é o mais perfeito Escobar que surgiu até agora. Seu "Dom Casmurro" tem o nariz de Luiz Fernando Carvalho, tem o sorriso de Luiz Fernando Carvalho, tem a mentalidade de Luiz Fernando Carvalho. Nada nele recorda o "Dom Casmurro" de Machado de Assis, apesar de reproduzir diálogos do romance.

Na série, Bentinho aparece estranhamente caracterizado como Dick Vigarista, do desenho animado Corrida Maluca: nas roupas, no bigode, na magreza, no temperamento e, acima de tudo, na canastrice do ator que desempenha seu papel. Qual é o melhor candidato a Muttley? O agregado José Dias.

A série Capitu tem um aspecto circense. É Machado de Assis encenado por Orlando Orfei. É Bentinho imitando Arrelia no picadeiro de Fausto Silva: "Como vai, como vai, vai, vai? Eu vou bem, muito bem, bem, bem". Luiz Fernando Carvalho usa uma linguagem grotesca, afetada, espalhafatosa, cheia de contorcionismos e de malabarismos.

Machado de Assis é o oposto. No livro Dom Casmurro, o relato de Bentinho é espantosamente seco e desencantado. Ele narra sua história apenas para combater o tédio: sem drama, sem sentimentalismo, sem teatralidade. Quando Bentinho descobre que o filho bastardo de Capitu com Escobar morreu de febre tifóide, ele comenta simplesmente: "Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro".
Luiz Fernando Carvalho só foi autenticamente machadiano na metalinguagem.


A atriz que interpreta Capitu está grávida de se-te meses. Quando um repórter lhe perguntou se o pai do menino era Luiz Fernando Carvalho – o Escobar de Jacarepaguá –, ela se recusou a responder, limitando-se a declarar, como uma Capitu do funcionalismo público: "Não vou dizer a identidade e o CPF dele".

A literatura brasileira tem um escritor. Um só. O que fizemos com ele, nos últimos cinqüenta anos, foi traí-lo com todos os Escobar que apareceram. Desde que Helen Caldwell, em 1960, negou o adultério de Capitu, moldando Dom Casmurro às suas teorias feministas, Machado de Assis foi raptado pela crítica esquerdista. Em particular, por John Gledson e Roberto Schwarz, que o transformaram ridiculamente num agente da luta de classes, empenhado em denunciar os abusos da classe dominante.

Na realidade, Machado de Assis é mais complicado do que isso. Ele é um satirista conformista e resignado, que zomba da mesquinhez de nossa sociedade e acredita que, quando ela muda, muda sempre para pior. A série Capitu festeja o abastardamento da obra machadiana. Machado de Assis sabe bem: de agora em diante, isso só pode piorar.

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