sábado, 7 de fevereiro de 2009

Eu, eu mesmo e eu comigo mesmo...

O que há de pior nas pessoas senão aquele espírito mesquinho que recebe o nome de auto-conservação? Uma vez alocadas em seus confortáveis recantos de paz – fruto de anos de suor e lágrimas – agora dão-se ao direito de arrotar empanturradas, olhando orgulhosas para o próprio umbigo. Desperdiçam energia e força, consomem oxigênio e ocupam espaços para unicamente sentirem-se satisfeitas consigo próprias, radiantes de alegria por defender o lugar no tabuleiro que há muito almejavam. Peças competentes da indústria da mediocridade, mortos-vivos ligados a vida pela sonda do egoísmo. Mal percebem-se escravos do capricho alheio, mal conseguem imaginar a terrível linha de produção que fomentam e vivem felizes a obedecer regras, tirando o chapéu para quem merece e doutrinando os que aceitam o posto de ignorantes. Para que mudar? Para que olhar para si próprio? Para que correr o risco de se sentir perdido? A felicidade desses espíritos jubilosos que se olham ao espelho e agradecem pelo próprio talento é falsa. Toda a maquiagem dessa bem-aventurança esconde a mais profunda solidão que somente os corajosos conseguem ter forças para enxergar. E ter coragem significa olhar para si não pelo reflexo do espelho mas pela perspectiva do outro. Essa é a atitude da mudança que não garante de forma alguma o passaporte para a felicidade, mas que, ao menos, afasta definitivamente a tentação de mergulhar na ilusão.

Escrito por Francisco Carvalho – 7.02.09 – às 16:22

"(...) Ao mesmo tempo, pensava comigo: assim como agora me visto e saio, vou visitar o professor e troco com ele algumas frases amáveis, mais ou menos falsas, tudo isso contra a minha vontade, assim procede a maioria dos homens que vivem e negociam todos os dias, todas as horas, forçadamente e sem na realidade querê-lo; fazem visitas, mantém conversações, sentam-se durante horas inteiras em seus escritórios e fábricas, tudo à força, mecanicamente, sem vontade; tudo poderia ser realizado com a mesma perfeição por máquinas ou não se realizar; e essa mecânica eternamente continuada é o que lhes impede, assim como a mim, de exercer a crítica de sua própria vida, reconhecer e sentir sua estupidez e superficialidade, sua desesperada tristeza e solidão. E tem razão, muitíssima razão, os homens que assim vivem, que se divertem com seus brinquedinhos, que correm atrás de seus assuntos, em vez de se oporem à mecânica aflitiva e olharem desesperados o vazio, como faço eu, homem marginalizado que sou. Se às vezes desprezo e até burlo dos homens nestas páginas, não será por isso que os culpe de minha indigência pessoal! Mas eu, que cheguei tão longe e estou à margem da vida, de onde se tomba à escuridão sem fundo, cometo uma injustiça e minto, se pretendo enganar-me e enganar os outros, como se funcionasse também para mim aquela mecânica, como se continuasse a pertencer àquele mundo nobre e infantil do eterno jogo!"

Hermann Hesse – "O lobo da estepe".

2 comentários:

  1. Lançar-se ao vazio é experiência sem volta. É a morte daquilo que somos. E não renascemos. Porque renascer significa voltar a ser o que se era. E na morte da existência é o vazio que nos preenche. A angústia é a usina do desejo. Andamos marcados como Demian, também de Herman Hesse. Marcados pelo vazio e pela angústia de não pertencer mais ao sonho (ou seria ilusão?) coletivo de pertencer à engrenagem maquínica do sistema...
    Aqueles que sobrevivem em caixinhas, como canta Nara Leão, a existência resume-se à repetição de uma falsa imagem que tenta imprimir na alma um significado para existir. No fundo no fundo, estamos todos perdidos num vazio existencial que não se preenche...

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  2. Como o outro, em uma de suas versões, definham olhando o reflexo de si próprios. Mas no fundo, nunca olharam com mais cuidado...

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