terça-feira, 21 de abril de 2009

Por que eu prefiro a inadequação?


"Conhecem a história do menino que pediu ao pai para lhe mostrar uma floresta?

O pai concordou, e, quando chegaram o pai perguntou se o menino avistava a floresta. Admirado, o menino disse:

- Vejo, mas são tantas árvores que não consigo ver a floresta.

Quando se tem tanta árvore alinhada de um lado a outro, já não se vêem as árvores. Vê-se outra coisa que transmite um outro conceito. Penso que se pode ter a mesma impressão quando há muitas pessoas juntas. Também elas perdem a própria individualidade e tornam-se massa e se conservam juntas por causa de seu interesse social. Nessa situação, as pessoas concentram-se unicamente em torno de seus interesses coletivos, tornam-se maravilhosas como protagonistas de um movimento social, mas não possuem nenhuma individualidade. As pessoas podem pensar de forma diferente para si, mas rendem-se aos interesses coletivos, que acabam por destruir a sua individualidade."


Abbas Kiarostami


Será que a ânsia por se aninhar no aconchego do anonimato, na escuridão confortável dos bastidores - já povoado por milhares de outras sombras sem rosto -, não é mais uma necessidade de auto-conservação, de defesa de uma aparente individualidade conquistada pela condescendência alheia, do que uma reivindicação por qualquer interesse coletivo? A massa amorfa dos sem-rosto é a muralha perfeita para a construção de um indivíduo egoísta que procura a sombra para se esquivar do perigo da radiação luminosa. Nesse sentido, aqui temos, ao invés de um representante das causas coletivas, um indivíduo doente em sua independência que só poderá defender, e para isso há forças de sobra, a manutenção da saúde do seu próprio umbigo.




Escrito por Francisco Carvalho. 21 de Abril; às 14:30.




quarta-feira, 15 de abril de 2009

"VOCÊS, OS VIVOS"



















Um viva para os suecos!

Não há protagonistas, a câmera não segue ninguém, apenas permanece estática advertindo que por ali quem manda não são as figuras desgarradas que desfilam pelo seu ângulo de captura. O mundo exibe-se em recortes secos, sem recheio. Enfim, um filme que apresenta personagens em sua forma humana, longe da patifaria virtuosística e sentimental dos heróis americanos – que, para o bem ou para o mal, povoam nossas mais sinceras expectativas.

“Vocês, os vivos” é uma obra de arte, não somente um filme de bilheteria. Tragicamente divertido, não nos perdoa em um só instante por nossa triste condição de marionetes errantes. Não há salvação, culpa e tampouco redenção, por esse motivo, não há vergonha em deixar-se seduzir pela personagem que entra em cena unicamente para ensaiar apaixonadamente a sua partitura de bumbo.

BUM BUM BUM BUM BUM... BUM BUM

O tempo é preenchido por uma absoluta crueza cotidiana, o que nos abre os olhos para identificar que as nossas mais portentosas paixões são justamente aquelas cabíveis no terreno da frugalidade. Lavar a louça adquire um clímax de arrepiar os sentidos – o que diria Benjamim Button disso – com os seus violinos apontando para a celebração apoteótica com a sua amada proibida -?

A vida é seca e é na secura que reside a sua poesia. E quanta poesia! Também não há resignação nesse cenário árido, aqui ainda existe o espaço para ajoelhar-se e pedir perdão por todo o repertório de cafajestagem a que a humanidade foi capaz (e ainda é) de colocar em prática. Justo é o médico que admite a sua frustração por atender ano após ano o repertório de reclamações mesquinhas de seus pacientes egoístas. Mas pergunte-me se esse mesmo médico – ele próprio um egoísta de plantão – permiti-se a audácia de jogar tudo para cima para sorver os dias restantes de sua vida em uma existência menos burocrática?

BUM BUM BUM BUM BUM... BUM BUM

A banda de jazz, não sei bem como classificar o ritmo, convida o espectador a batucar com o pé o andamento tragicômico das desventuras das personagens perdidas em suas insignificâncias. A garota que lamenta o amor não correspondido dá as mãos ao marido que prefere listar suas pendências financeiras a dar atenção ao orgasmo da mulher. Quando tudo está prestes a desmoronar – porque nesse ponto já é possível admitir finalmente que a vida é uma aventura que não faz sentido algum – a música nos força a rir. E esse é o sentido último, o único que de fato vale o esforço: o de rir.

Tudo isso com a câmera estática, sem reclamar a atenção por alguma justificativa maior. A simplicidade de “Vocês, os vivos” revela uma rigorosa consciência artística que lembra as construções líricas de Fellini.

Não deixe de conferir esse filme, uma verdadeira inspiração principalmente para nós, brasileiros que ainda reivindicamos um cinema que precisa subir ao morro – e apelar para o método de lobotomia que tenta arrancar a expressão de alguma verdade escondida – para promover a identificação com o espectador. O sonho, o onírico, o absurdo em “Vocês os vivos” é mais eficiente no reconhecimento da humanidade do que os tiros de fuzil que cortam os barracos para absolver ou condenar nossos heróis de farda.

Escrito por Francisco Carvalho, às 23:34 – 15 de abril de 2009.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Dom Quixote, alma de artista.


Por que a alma do artista interessa-me mais do que aquela pertencente ao homem acostumado com a sua sobrevivência?

Por que este último aspira, mesmo em sua inocência, ao verdadeiro e, para isso, usa o julgamento como ferramenta de defesa – o outro, dessa forma, não escapa do jugo daquele, que, invariavelmente, o classifica de acordo com sua tabela de valores. É um homem preso em grilhões forjados não por ele, mas por alguma instância que não sabe reconhecer e a qual credita o status de “verdade”.

O artista, por sua vez, aspira ao falso, não porque não acredita na verdade, mas porque vive por buscar uma verdade que o satisfaça intimamente e que, ao contrário da outra, não servirá como ingrediente no cardápio dos consensos. Por essa razão a busca nunca termina, porque tê-la como encerrada é o mesmo que admitir uma soberania enganosa que recairá novamente numa escala de valores e, portanto, no julgamento.

A busca do artista é solitária, em última instância, o próprio artista é um ser solitário, não por opção, mas por necessidade. Aspirar ao falso é enveredar pelo caminho da vida como devir, como percurso de transformação que nunca congela qualquer movimento em certezas. Não será essa justamente a única certeza que a vida nos ensina? A de que somos perenes ao movimento e, portanto, parte constituinte dele?

O artista é um ser iluminado porque opta pelo caminho da bondade. Sua busca solitária não o torna obtuso e egoísta. Ao contrário, a criação, sua única ferramenta, não esgota a vida em princípios, mas a devolve em forma de aromas, sabores, sensações, possibilidades. Não há julgamento porque a expectativa aqui não se resume a cumprir, o exercício não é o de obedecer, mas o do convite a participação. Não há verdades, há formas inacabadas, imperfeitas, perenes ao movimento.

Dom Quixote não é mais um louco, é um ser de luz que trilha o seu próprio caminho através da vida como potência do falso. E nada precisará ser justificado porque o que é agora poderá não ser mais adiante. É um vidente que vive na plenitude da vida, ao invés de se esquivar por detrás dos moinhos das afirmações.

Dom Quixote é um artista e a sua alma interessa-me mais do que a do homem acostumado com a sua sobrevivência.

Escrito por Francisco Carvalho, 2 de abril de 2009, às 1:00 da manhã.