quinta-feira, 14 de maio de 2009

As benesses da impertinência


Por que me sinto cada vez mais um sujeito impertinente? Que sensação de inadequação é essa que quase sempre alimenta o meu espanto para com o mundo dos homens?

Se a minha impressão é verídica, se constitui uma falha de caráter ou até mesmo uma qualidade do meu espírito, não faço idéia e pouco me interessa investigá-la dentro de qualquer perspectiva ética ou moral. Aliás, essa prática que elege o julgamento como ferramenta de identificação do que é modelar ou condenável também me parece cada vez mais questionável. Aqui também sou impertinente, você poderia dizer.

Agora me lembro que já fui acusado, certa vez, de encarnar o gênio romântico. Um Werther sofredor que, desiludido com a humanidade, trancafia-se numa torre de marfim e olha para si próprio como único representante de um ideal já extinto.

“Oh Céus, Oh vida”, já diria a hiena melancólica do desenho animado.

Encontro uma resposta, mesmo que incompleta, para a minha impertinência. Sou impertinente porque duvido. Se tivesse a oportunidade de servir como réu em um tribunal regido por um fictício panteão de Deuses e a mim fosse perguntado o que penso a respeito da raça a qual pertenço, responderia da seguinte maneira:

Não glorifico os homens, nem tampouco os condeno por suas atitudes, apenas reservo o direito de duvidar do que dizem.

Se no início a minha consciência foi povoada por certezas e convicções, hoje identifico claramente que caminhar para a velhice é, para mim, um percurso trilhado pela via da interrogação. Com direito a paradas incertas que conduzem a um comportamento de resistência.

Mas como duvidar que a raça humana, em sua grande maioria, assina embaixo do tratado feito em homenagem as tartarugas de Galápagos?

A “camaladagem” humana – termo criado por mim para enaltecer a perspicácia do camaleão em mudar de cor para manter-se vivo – reside na sua enorme capacidade de desenvolver o cinismo como arma de defesa.

A seleção natural preserva os cínicos, os espertos. Quem nunca viu na televisão aquele pássaro que prefere alocar o seu ovo no ninho de outra espécie para que o rival crie o seu rebento sem que ele dispense qualquer esforço para isso? Oh grande filósofo e profeta da humanidade: Charles Darwin.

Duvidar é dar um passo atrás, promover uma interrupção no fluxo da normalidade, recusar a adaptação. É uma posição de evidência, mas também de muito perigo. A chance de perecer rapidamente é grande.

Comecei a duvidar das grandes soluções: de um Deus salvador, de um regime político ideal, de um emprego impecável... e acabei empregando a mesma atitude nas coisas mais simples da vida. O cotidiano, acreditem, é um terreno tão fértil em cinismos adaptativos que é perfeitamente possível reconhecê-los como os alicerces das grandes soluções. E, com um pequeno exercício de impetuosidade, não é difícil desmontá-los com alguns petelecos.

Quanta audácia! Quanta impertinência! Remar contra a corrente! Evitar o inevitável!

Não penso que eu seja parecido com o Werther de Goethe, mas gosto da comparação com a hiena. Depois das lamentações - “Oh céus, oh vida” - o bicho do desenho animado desata a rir, numa gargalhada fabulosa.

Como é fabuloso viver entre os homens, cínicos apaixonantes. Mais apaixonante ainda é assumir o risco da impertinência, porque embora seja uma posição sempre arriscada – e os riscos são muitos – não há ângulo melhor para rolar no chão de tanto rir.

Escrito por Francisco Carvalho às 23:43; quinta-feira / 14 de maio de 2009.

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