quarta-feira, 4 de novembro de 2009

O BANQUETE.


Recostou-se no balcão da lanchonete depois de haver pagado com moedinhas a sua única refeição desde o café da manhã, o chefe não permitia mais de 30 minutos de almoço para os estagiários, preferia, então, aproveitar a deixa para mostrar serviço. Não aprovava em nada a conduta dos outros que lutavam desesperadamente para engolir uma coxinha no menor tempo possível.

O molho estava apimentado demais, curiosamente mais apimentado que nos dias anteriores... excessivamente quente, pelando... e apimentado.

Foi no segundo anterior ao primeiro mordiscar de seu suculento cachorro-quente que Maria Clara ouviu os primeiros uivos ao longe.

“Pu-taaa! Pu-taaa! Pu-taaa!”

A princípio não imaginou que o coro de lobos famintos fosse suplantar o seu feroz desejo de enfiar goela abaixo aquela salsicha besuntada pelo mais surpreendente molho apimentado.

Mas o verdadeiro tempero picante daquela noite estava ainda por vir.

Maria Clara, moça tímida e recatada, aluna dedicada do 1º ano do curso de sociologia, aproximou-se da murada do terceiro andar, ainda sob os movimentos maxilares da abocanhada inicial, a tempo de ver a multidão que se aglomerava no pátio central.

19:45. As aulas ainda não tinham começado quando, vestida para a guerra, Soraia chegou. No percurso até a sala de aulas resolveu passar em revista a matilha de quadrúpedes que a mirava, em especial na altura das coxas avantajadas. Seu arsenal era de botar inveja a qualquer exército inimigo:

Calibre de 20 anos, fuzil de um metro e setenta, com cartuchos loiríssimos esticados e granadas verdes. Conjunto brindado com um par de pernas nuas com pelinhos oxigenados à vista, escultura emoldurada em um salto 15. O veículo: um tanque moderníssimo da marca mini-saia rosa-choque.

Enquanto os lobos pingavam saliva, as maritacas empoleiravam-se nas amuradas, algumas arriscando vôos rasantes:

“Ela veio provocar”

“Ela andava rebolando”

“Deixou cair uma carteira de propósito, só para ter de se agachar”

“Aquilo não é roupa de vir à faculdade”

Maria Clara reconheceu Soraia, sua companheira de lotação, intimidade, se não completa, conquistada na única ocasião em que dividiram o mesmo banco do coletivo. Pretexto mais do que suficiente para Maria Clara tomar conhecimento de assuntos gerais, tais como: qual curso cursava, ano... e outros banais, como a preferência da garota por chicletes tutti-frutti.

Acuada no banheiro feminino, Soraia viu-se surpreendida por mais de 30 rabos de saia que tentavam a obrigar a vestir uma calça comprida, reação imediata ao desaforo estampado nas faces dos seus namorados ou pretendentes. Atitude mais do que natural, afinal, quem não se sentiria tentado a trocar um fusca 66 com a funilaria por fazer por uma Ferrari do ano?

O ciúme as alimentava de uma inveja indecente e inconfessa de estar no lugar de Soraia.

Enquanto a pólvora queimava, os aliados ganhavam terreno, avançando na frente oposta:

"Ela sempre anda assim, de um jeito ousado."

"Ela faz esse estilo mulherão mesmo."

"Ela é avantajada, sim, e daí?”

"É uma vergonha para a escola ter alunos assim. Parece que esses caras nunca viram uma mulher."

20:00hs. A faculdade inteira havia desistido da idéia de substituir o circo medieval pelas aulas de história, o mofo dos livros não podia competir com o teatro ao vivo – uma chance única de experimentar a bestialidade na sua forma mais concreta.

Por alguma razão, sabe-se lá qual seja, alguns professores – hábeis comandantes na artilharia motivacional, engrossaram coro com a matilha de lobos, o que acabou por abrir o apetite, inclusive dos seguranças e funcionários da instituição.

Agora todos babavam por Soraia.

“Pega ela! Vamos estuprar!”

Vendo que a guerra poderia descambar para a chanchada, o diretor agarrou o telefone e alcançou sem demoras a delegacia de polícia. Em menos de 15 minutos os PM’s – corajosos defensores da ordem e da moral – tratavam de enxugar a saliva dos famintos.

Soraia, até então protegida em um bunker batizado de “sala de aulas”, local propício ao enobrecimento do espírito, saiu escoltada pelas fardas dos soldados da paz. Quando Soraia passou, escoltada, na frente da sala dos professores, uma docente fez questão de sair. Com uma careta, perguntou: "É essa a fulana?".

Na catraca da escola, sempre sob a escolta policial, Soraia viu entre os que a agrediam uma menina com o celular na mão, fotografando a sua vergonha. Maria Clara, a mesma menina recatada que pegava diariamente o mesmo ônibus que Soraia, estufava o peito ao atacar:

“Putaaaaa!”

Na beirada da boca de Maria Clara, fronteira de união entre o lábio inferior e superior, podia-se ver uma mancha vermelho escura. O molho ainda úmido escorreu pelo rosto da garota até formar uma gota vacilante que teimava em decidir pelo queixo ou pelo chão. Quando finalmente atingiu o solo tornou-se uma lembrança, lembrança logo esquecida de uma refeição não consumada.... e apimentada.


Roteiro radiofônico escrito por Francisco Carvalho. Novembro, 2009.

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