sábado, 9 de junho de 2012

Quando Pirituba recebe a rainha...




Lancei um olhar através da janela e vi lá fora uma massa branca dominando a paisagem. Fog em Pirituba? Não sei. Não moro em Pirituba. Nem sei onde fica. Mas cá onde estou, vizinho de Pirituba e a milhas do Big Ben, fog se chama neblina. Era neblina. Mas lembrou-me a fog do além mar. Resolvi ligar para a rainha. Fazia tempo que não batia um papo com a realeza. Não pude comparecer ao jubileu dos 60 anos de reinado da Eliza. Compromissos tropicais me prenderam abaixo do equador. Essa era uma oportunidade de me desculpar e perguntar como andavam as coisas no castelo de Buckingham. A última vez que lá estive a grama do jardim estava alta demais, tão alta que dificultava as nossas partidas de cricket. Por isso que nunca levei a sério as gozações do jovem Will em razão das lavadas que tomei. Só consigo colocar meu time em campo com a grama rala. Mato alto é bom para a caça a raposa. Lembro-me perfeitamente do Watson, o beagle mais talentoso do mundo para esse tipo de esporte. Havia disputas homéricas para ver quem ganhava o direito de incluir o velho Watson na matilha. Quem contasse com o Watson na equipe já saia na frente. O faro do bicho surpreendia a todos. Até o Duque da Cornualha, que estampava um narigão de peixe-boi, se rendia ao talento insuperável do focinho do velho Watson. Por onde andará agora o velho Watson? Na sua tenra infância canina, quando ainda nem sonhava em ganhar o título de Dog-of-Wales, dormitava tranquilamente aos pés da Rainha-Mãe. Oh, Mother-Queen! Que Deus a tenha. Quantas e quantas vezes não rodei o gramophone para ninar a Rainha-Mãe na sua alcova? Sua ópera predileta era a Norma de Bellini. Até hoje quando ouço a Maria Callas interpretando a casta diva me recordo do ronco suave da Rainha-Mãe. Que Deus a tenha. Que Deus os tenha, melhor dizendo. A julgar pelo tempo que já transcorreu, Watson já deve estar novamente fungando a sola do pé da Rainha-Mãe. Chulé de raposa velha, era a piada que fazíamos. Humor inglês pode. Humor inglês não é que nem o nosso, politicamente-correto. Humor inglês é polite, só polite. Se não entende inglês, caro leitor, apanhe um dicionário. The book is on the table. God save the Queen! Alô? Your highness? Is that you? Não era. Era o mordomo. A rainha estava fazendo sua toalete. Rainha não vai ao banheiro. Rainha faz a sua toalete. Aguardei na linha durante uma breve eternidade que não sei exatamente precisar o quanto durou. Enquanto segurava o gancho do telefone, a paisagem lá fora se tornava surpreendentemente cada vez mais britânica. Pirituba virou Londres? Não sei, nunca estive em Pirituba. Nem sei onde fica. Mas os meus ouvidos não me deixavam enganar. O barulho da buzina era inconfundível. E vinha lá de fora. Alguma embarcação acenava sua passagem por debaixo da london’s bridge. A mesma ponte que havia queimado por completo no grande incêndio de 1666. Deu uma vontade louca de prevenir a rainha sobre o perigo do uso freqüente da lareira no quarto de dormir. É hábito da Eliza acender o fogo antes de pegar no sono. O ruído das lenhas estalando é como o arauto de Morpheus, um verdadeiro bálsamo para os seus sonhos. Como sei disso? Elementar meu caro Watson (in memoriam). Sei disso porque era eu mesmo quem se prontificava a adentrar nos aposentos da realeza para animar as brasas. Sentia-me o servo mais sortudo do mundo. Nem a guarda real tinha a oportunidade de ver a rainha de camisola. Camisola e coroa. Sim, porque Eliza nunca abria mão da coroa. Não era só no trono. Quer dizer, até no trono a coroa era adereço obrigatório. Imagine Eliza fazendo sua toalete de coroa! Ah quantas saudades da minha grande e querida rainha! Hello? Queen my dear? Is that you? Não. Não era. Era o mordomo pedindo-me a little more paciência. A your highness estava tendo um pequeno inconveniente com o desjejum. Parece que a ameixa negra da Guatemala, uma das iguarias obrigatórias em Buckingham, havia passado da data de validade. Agora cabia ao trono real despachar a notícia do acontecido. Não me importava em esperar. Continuava com o gancho do telefone na mão, ansioso e rígido como uma estátua. Quando se trata de esperar pela rainha, tudo vale à pena. Até virar estátua de cera no museu da Madame Tussauds. E foi assim, meio encerado e com o gancho na mão, que ouvi a trupe de atores cantando logo abaixo da minha janela. Era a companhia de Shakespeare que se dirigia ao The Globe para a estreia de Hamlet! Pirituba virou a Dinamarca? Hamlet em Pirituba? Não sei. Nunca estive em Pirituba. Nem sei onde fica. Quiçá Hamlet! Mas eu não estava sonhando, não! Haveria em breve um ‘Ser ou não ser eis a questão’. Deu uma vontade louca de convidar a rainha para assistir ao espetáculo. Pensando bem, talvez não fosse conveniente. Como a Queen iria receber a cena dos coveiros? Quando se chega à determinada idade é melhor evitar o uso das ironias. Pode ofender. Ou pior, insinuar que em breve tudo virará pó, até a constituição firme e sólida da realeza. E isso seria inadmissível. Imagine a rainha voltando como fantasma no ato seguinte? Segundo o enredo, Charles teria de matar o tio. Mas sabe-se lá se há um tio na sucessão da coroa! A coisa enrolaria de tal forma que correria o risco de virar trama de Nelson Rodrigues. Longe de mim acusar a realeza de bonitinha, mas ordinária! Eu iria para o calabouço bater um papo com a Mary Stuart! Hello? Your highness? Não era. Era o mordomo. Teria de esperar mais um tempinho. Esperei. Ainda espero. Para falar com a rainha espero até virar uma caveira carcomida por vermes... 

Nenhum comentário:

Postar um comentário