O bigodão grisalho levantava-se ferozmente, vítima
inesperada de uma lufada quente de bafo proveniente dos recônditos gargantais
do nosso herói anônimo: JUSTIÇA! JUSTIÇA! JUSTIÇA! Uma breve pausa para inflar
o pulmão e pronto, lá ia novamente o pobre do bigode subir naquela montanha
russa de apelos éticos: JUSTIÇA! JUSTIÇA! JUSTIÇA! Estufava o peito para clamar
o direito mais necessário, justamente aquele direito mais caro à formação do
caráter de todo ser humano de bem, e ele era definitivamente um homem de bem,
afinal, que pecado haveria de expiar um homem trabalhador que acordava cedinho
para cumprir suas obrigações dentro de seu terninho já muito surrado, indicando
anos de dedicação na função de tabelião no cartório da esquina? Sim, caro
leitor de bem – rogo aos céus, caro leitor, para que tu não me decepciones
nessa hora preciosa, fugindo da qualidade de um digníssimo representante
literário do bem para chafurdar nas páginas mediúnicas de um Paulo Coelho
qualquer -, enfim, o que temos aqui é um exemplo perfeito de cidadão honesto
que, embora nunca tivesse lido a constituição, quiçá o dicionário - para conferir
o sentido dessa tal palavra ‘JUSTIÇA’, não poupava o fôlego para expeli-la boca
afora, envolvendo nesse processo o conjunto total de seu frágil esqueleto, todo
ele preenchido pelo mais sincero tutano do bem. E a coisa se dava mais ou menos
assim: nosso herói anônimo, proclamador da ordem, enrijecia os músculos do
pescoço até as veias formarem lombadas enormes, que na verdade funcionavam como
dutos condutores do sangue, distribuído igualmente para todo o organismo a
partir do cérebro... Detalhemos passo a passo as etapas: depois dos glóbulos
vermelhos serem doutrinados na difícil missão de convocar os órgãos para uma
greve geral no que diz respeito à exploração sofrida pela máquina difamadora
dos hormônios da libido – os únicos que de fato sabem o caminho da boa vida -,
os neurônios, ávidos líderes sindicais da razão, despachavam os soldados
vermelhinhos em jatos regulares sob o batuque do camarada coração, e assim,
cada centímetro do nosso herói anônimo podia tremer em êxtase no exercício
supremo da reivindicação, e o fim da linha, como todos já sabemos, elegia como
vítima o pobre do bigodão grisalho, que era forçado a sofrer uma chapinha
progressiva mediante o bafo quente expelido pela boca do nosso herói justo –
alguém já imaginou se o próprio bigode se revoltasse com a situação e buscasse
ele próprio seus direitos frente à tamanha indignidade? JUSTIÇA BIGODAL!
JUSTIÇA BIGODAL! JUSTIÇA BIGODAL! Era o que se podia chamar de um
rato-de-tribunal. Onde houvesse uma junta de juízes promovendo debates públicos
a respeito do destino de um réu, lá estava ele, e se não o deixassem adentrar a
sala do júri para acompanhar tudo de perto não havia problema algum, permanecia
orgulhoso na parte de fora mesmo, segurando firme o seu cartaz com os mesmos
dizeres de sempre: ‘JUSTIÇA! JUSTIÇA! JUSTIÇA!’ O seu currículo era invejável,
havia participado ativamente dos últimos grandes escândalos que abalaram a
nação, e nisso estavam envolvidos tanto os assuntos criminais – como aquela
menina que num golpe de insanidade completa matara os pais com a ajuda do
namorado e o irmão dele -, bem como os delitos de corrupção, em que o alto
escalão dos funcionários públicos, principalmente políticos, era conduzido à
chibata na frente dos magistrados do supremo tribunal. Documentava tudo. Fotos,
vídeos, gravações de áudio eram a prova cabal de que o nosso rato-de-tribunal
estivera presente em todos os eventos. Seu lema, um claro e inequívoco ‘A voz
do povo é a voz de Deus’, lhe absolvia do dever de buscar ele próprio as
conclusões para o caso. Não havia necessidade alguma de se debruçar sobre o
assunto do crime em questão, uma vez que a gritaria popular o convidava a
formar coro nessa importante atitude em prol da justiça. E assim caminha o
nosso herói, sempre à espera da próxima sensação jurídica que exija a
contribuição da sua voz. Uma voz completamente ignorante, mas enfileirada com
os deveres éticos e morais que todo cidadão de bem se orgulha por estampar.
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