terça-feira, 27 de novembro de 2012

Naomi...


A chegada da Naomi não foi algo programado. Num determinado dia, acordei com a convicção de por fim à hegemonia da dinastia dos pastores alemães, raça de focinhos altivos que durante quase toda a minha infância reinaram absolutos no quintal de minha casa. Saí em busca de um labrador. Seria um labrador preto, ou melhor, uma labradora preta. Sempre gostei dos cães pretos, e as fêmeas me parecem mais espertas e carinhosas que os machos. Estava decidido! Uma labradora preta cujo nome seria Naomi Campbell - homenagem protocolar à modelo inglesa de mesma cor -, era a futura, embora ainda desconhecida, mais nova moradora da Rua João Carlos de Almeida. Encontrei com a Naomi rapidamente, num bairro próximo à minha residência. Era o penúltimo filhote de uma ninhada que eu não conheci, já que todo o restante da ninhada já havia sido vendida. A Naomi estava lá, brincando com o seu irmãozinho, ambos parecendo dois torrões de carvão orelhudo. A chegada de um novo bicho numa casa é sempre traumática, principalmente na ocasião em que eu enfiei a Naomi – eu a trouxera de surpresa, sem pedir o aval de meus pais. Ainda que a ideia inicial seja rejeitar um novo filhote de cachorro (os motivos podem ser os mais variados e plenamente justificáveis) ninguém consegue resistir por muito tempo ao olhar de um filhote de labrador. Minha mãe estava na cozinha quando apareci com a Naomi no colo, ela toda orelhuda, lambendo cada centímetro que conseguia do meu corpo. Minha mãe soltou uma interjeição... e pronto! Naomi já estava aceita. Terminada a apresentação aos humanos, era hora de Loys Lane, nossa pastora alemã, conhecer aquele pedaço de focinho africano. Não houve grandes contendas, mas era visível o semblante desconfiado da anfitriã-peluda, já articulando medidas urgentes com o intuito de evitar a improvável, porém iminente, queda de todo o seu império austro-húngaro já há anos consolidado abaixo dos trópicos. Não me lembro de todos os detalhes que marcaram a passagem da Naomi por minha casa, mas o que sei é que tive uma experiência completamente diferente com ela, uma camaradagem especial que até então cachorro nenhum havia me oferecido. O labrador é diferente do pastor alemão. O labrador deve ter sido concebido pelo Todo Poderoso depois da criação de todas as suas obras magnânimas, no meio da pasmaceira do sétimo dia, justamente para que o bicho lhe fizesse companhia apoiando o focinho nos seus digníssimos pés cansados. O labrador é uma espécie de Bartelby de quatro patas, muito parecido com esse personagem de Herman Melville que ficou famoso na história da literatura por evitar se sujeitar às ordens dos outros, preferindo apostar na sua preguiça congênita. O labrador, diferente do pastor alemão, não tem as suas orelhas em forma de radar, prontas para detectar o invasor que se aproxima. Bastava a campainha de casa soar para a soldado Loys Lane fazer uso de toda a sua experiência militar e correr em disparada com seu uniforme felpudo em direção ao front da porta de entrada, enquanto que a Naomi oferecia como reação no máximo um ronco e uma esticada preguiçosa de pernas, dizendo: ‘relaxa, gente... não há de ser nada’. As orelhas do labrador são caídas, o que lhe confere um olhar relaxado e tranqüilo, típica fisionomia do sujeito bonachão que quer tão somente fazer amigos. Naomi não se metia em encrenca nenhuma. Quando alguma confusão se armava, seja ela de qual natureza fosse, Naomi dava um jeito de se distanciar, para lá de longe lançar a sua famosa expressão de quem diz: ‘gente... pra quê isso?’. Naomi era a representante da ONU na minha casa. Foi pelo intermédio dela que os meus gatos (sim! Além dos cachorros também havia gatos) resolveram interromper a versão peluda da guerra Israel-Palestina para, num arroubo de coragem pacifista de fazer inveja ao Mahatma Gandhi, empreender jornada até o colchão dos cachorros numa noite fria... a partir desse dia, os gatos passaram a utilizar a barriga da Naomi para pegar no sono, subindo e descendo como numa gangorra impulsionada pela respiração daquele focinho avantajado. Foram 13 anos de convivência com a Naomi, um cachorro que me ensinou que a vida é um negócio extremamente simples, na grande maioria das vezes complicado por nosso próprio esforço. Naomi adorava simplesmente estar perto de alguém, e, lá no seu canto, adormecia. Nunca recusava coçadas na barriga e uma boa refeição significava o prenúncio de uma soneca de valer à pena. Era inteligentíssima, só não falava porque fez um pacto comigo de nunca abrir a boca para dizer besteiras – esse departamento era reservado somente ao dono -, e assim, no alto da sua sapiência canina, soube permanecer em silêncio até a sua morte há dois dias. Naomi adorava passear, juntos desbravamos o bairro de Interlagos por caminhos que eu a pé, sozinho, nunca havia me aventurado. Gostava tanto de passear que aprendeu a não precisar da coleira, muito menos da guia... sabia perfeitamente que aquele era um ritual sem qualquer necessidade de repressão, bastando um assobio do seu dono para que se juntasse ao meu lado. Ela indicava o caminho a seguir, eu a acompanhava. Conversávamos no silêncio, e não foram poucas às vezes em que passei longas horas a escutá-la. Nietzsche disse que a vida sem a música seria um equívoco... do alto dessa minha filosofia-de-caixa-de-fósforo, acrescento humildemente: a vida sem os animais seria um retumbante equívoco... condenados que seríamos a conviver integralmente apenas com nossos companheiros de raça. Obrigadíssimo Naomi! Fique bem onde está.

Um comentário:

  1. Linda crõnica! Gosto de pensar Deus fazendo caninos no sétimo dia!

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