quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Ao lado da guarita, uma casinha de cachorro... e dentro, um cachorro.



Ao lado da guarita do Guarda, bem ao lado desse caixote de concreto com uma janelinha de vidro incrustada no meio para que o homem que está lá dentro possa nos proteger dos outros de nós mesmos que estão do lado de fora, vizinho a esse bunker mal ajambrado que pinga nas esquinas das nossas ruas e faz nos fingir mais seguros, bem ali do lado, irmã-caçula da construção maior e colada a ela, está a casinha do cachorro. De teto de lona de plástico ou de telha, elevada por tijolos do chão úmido ou forrada por jornais de ontem, de alvenaria ou mesmo de restos assimétricos de tábuas largadas por aí, ao lado da guarita do Guarda está sempre ela, a casinha do cachorro. E dentro está ele, o cachorro. De olhos semicerrados e orelhas dobradas ao meio formando setas que apontam para destinos contrários, misturando uma cor na outra sem qualquer cerimônia estética típica dos primos de pedigree, no alto da postura altiva da sua viralatice respeitosa, como uma esfinge congelada pela nobreza dos sortudos que nasceram com focinho ao invés de nariz, o cachorro jaz sentado sobre as patas traseiras na função de proteger quem nos protege. Lá dentro da casinha permanece ele, e sem desmontar a figura emite um breve suspiro de alívio que faz inflar seus pequenos pulmões num convite tentador para esparramar em definitivo o papo ao chão e dar adeus ao árduo ofício de vigiar quem nos vigia. Mas o cachorro resiste. Quem o visse de longe poderia confundi-lo com uma sentinela de cera, inerte na mesma postura de sempre, com aquele rosto de fiel escudeiro semiencoberto pela sombra projetada pelo teto da frágil moradia. Mas o cachorro não parece se importar com a imagem que produz na mente dos passantes, e ainda que tivesse consciência do que dizem ou pensam, responderia que a condição de cachorro-estátua lhe cai muito bem no exercício de zelar por aquele que o alimenta e vez ou outra o afaga no cocuruto. Ora bolas, um cachorro estátua! Pensa o cachorro sem mover um milímetro do seu perfil de mármore, que tipo de gente vocês são para denegrir os sujeitos de quatro patas como nós? Vivem por aí zanzando de um lado para outro e acabam sempre voltando para o mesmo lugar! E mesmo que não falasse para ser ouvido, o cachorro tinha razão. A rua era uma passarela de trânsito previsível, as mesmas pessoas passavam por ela para ir ou voltar de lugares que já tinham ido não sei quantas vezes, e voltado outras tantas infinitas. Se há a necessidade de ir, porque ao chegar não ficar de vez? E se quiserem voltar, que voltem para sempre. Isso sem contar aqueles semáforos e sinais de trânsito que organizam um fluxo de formigas paranóicas, condenando o pobre diabo que fugir do combinado a virar assassino ou cadáver. E se ainda toda essa gincana fosse brincada no silêncio... mas a regra é estourar o tímpano do vizinho. O que dizer então da obrigação, tão esquizofrênica quanto às outras, de fingir que cada dia é um dia diferente? E dá-lhe um repertório incrível de fantasias e argumentos para convencer o mundo de que as cartas ainda não estão dadas, exigindo que cada um construa um teatro próprio na intenção de protagonizar uma farsa mesquinha de expectativas, futricas e vaidades: Fulaninho foi promovido, Sicrano traiu a esposa, Beltrano está terrivelmente aborrecido com a sua ausência na festa de aniversário da filha... uff! Não basta simplesmente viver para ser feliz com o quinhão de felicidade que já está ao alcance das mãos, ou das patas, considerando o meu caso? É isso mesmo! Sou um cachorro-estátua! Não vou a lugar nenhum porque aqui já está ótimo. Que fiquem vocês com suas consciências elevadas, a mim não importa nada disso. [PAUSA] Finalmente o cachorro ajeita-se dentro da casinha e deita, o focinho virado para dentro... a mensagem é clara: ‘chega! Vocês me cansam com toda essa filosofia chinfrim!’... Mais um suspiro canino. Dentro da guarita o Guarda prepara-se para o período noturno e acende uma luz amarela que ilumina precariamente o curto espaço em que habita sentado, mas o suficiente para provar que ele está lá, pronto para nos proteger de outros de nós mesmos. Um pássaro solta uma espécie de guincho ao longe e o cachorro, sábio na literatura dos ruídos, somente amplia um pouquinho mais a fresta mínima do seu olhar de detetive à paisana num reflexo de quem sabe que aquilo que está no céu é incapaz de ameaçar aquele que dentro da guarita imita a mesma postura preguiçosa do seu Sancho Pança de rabo abanante. Se não fosse pelo meu dono eu desistiria dos humanos, pensaria o cachorro caso pudesse pensar... O dia cai depressa e a rua sem pressa insiste em prever adiante mais uma jornada semelhante à anterior - uma sucessão ininterrupta de idas e vindas de carros e pedestres, às vezes na garupa de uma bicicleta, numa carona de vigília sem fim, à espreita dos ponteiros que avançam porque foram instruídos a avançar. E lá fica o cachorro dentro da sua casinha, um totem de bigodes que tudo vê sem nada interferir, dessa vez deitado, pronto para dormir... e dorme.        

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