sábado, 18 de maio de 2013

ANTINATURAL POR PRINCÍPIO, NECESSIDADE E URGÊNCIA!

Sou grato ao teatro. E pelo teatro sou grato à mentira. Nunca entendi aqueles que, através do teatro, quisessem experimentar a verdade da vida, tornando o palco uma extensão de suas personalidades íntimas, laboratório de crises geradas no convívio do cotidiano. Sempre tive a convicção absoluta de que tornar o palco um espelho da vida é empobrecê-lo, torná-lo menor e infinitamente menos potente naquilo que poderia alcançar se, como princípio, voltasse às costas para as relações de causa e efeito que somos obrigados a lidar na frequência inapelável dos dias. Parece-me contraditório exigir do teatro uma fidelidade de aproximação à vida, e atribuo isso, logo de cara, a sua arquitetura fantasiosa. Como uma caixa preta protegida por cortinas e exposta por uma série de cadeiras numeradas poderia fingir naturalidade? É tudo antinatural no teatro, do começo ao fim o cerimonial de uma peça de teatro estabelece com quem dele partilha um pacto de fanfarronices que se fôssemos levar a sério cairíamos numa contradição digna de subverter a ordem lógica (ou ilógica) das coisas. O teatro é ilógico e é aí que está a sua lógica, em algo que necessariamente carece de ser inventado, testado, experimentado pela primeira vez. O ator entra também nessa mesma carona. Não entendo alguém que escolha o palco para, ao nele pisar, revelar-se, mostrar-se aos outros, compartilhar aquilo que se é na absoluta sinceridade de uma emoção constituída por uma identidade que é preservada nos âmbitos da vida, essa mesma vida que se vive fora do teatro. Isso soa a mim como outra piada sem sentido, ou, no mínimo, um novo contra-sendo às dinâmicas da máscara - elemento ao qual o ator necessariamente se esquiva ao vesti-la, inclusive privando o público de reconhecer quem por detrás dela dá movimento ao inanimado das formas nela estampadas. Agora, por incrível que pareça, o teatro, naquilo que eu acredito que ele carrega enquanto força preservada, não se afasta da vida ao recusá-la. Ao contrário, o teatro, ao tratar de mentiras irrealizáveis no terreno da rua ou da psicologia dos homens, encontra conosco justamente na verdade que nos sustenta enquanto indivíduos. Uma outra verdade, é fato. Dessa vez, uma verdade essencial, mais intensa e contundente do que aquela amparada no que eu vejo e reconheço como sendo verossímil e, portanto, coerente. A mentira, como elemento de trabalho, é infinitamente mais reveladora de verdades essenciais do que a ladainha dessa outra verdade menor, tornando a metáfora do palco como um interessante laboratório em que o estranhamento da esquisitice nos obriga a voltar os olhos para os fundos adormecidos do qual todos nós, invariavelmente, somos fundadores e realizadores. O teatro, ao que me parece, esconde para relevar, preserva o ator para dele fazer brotar outra coisa maior que a intimidade de um intérprete. O teatro não se presta a uma leitura rápida, como ocorre com a imagem. O teatro, no inverso dessa mão, é lento, demorado, contaminando aos poucos a sala de representações com formas desproporcionais de vida, inconfundíveis fora dele. Nessa medida, sou grato ao teatro por fugir daquilo que sou, embrenhando-me nas fissuras de um departamento sem parâmetros aos olhos críveis da rotina diária. E, por esse caminho impossível, é que ocorre uma revelação sempre mais fundamental que aquela corroborada pelos índices de pergunta e resposta, tanto realizados para a correta manutenção de uma existência já há tanto planejada. Toda vez que me tomam por alguém extrovertido, acessível aos outros, simpático ao mundo comum, e tudo isso justamente porque subo ao placo para me expressar (eu não me expresso em lugar nenhum! Não sou espontâneo nunca! Nunca consegui ser!), toda vez que essa confusão ocorre, invoco-me! Não sou outra coisa senão alguém que busca ser inacessível ao mundo, alguém que recusa as simpatias diárias, ou um representante das causas naturais de convívio humano. Não posso e não tenho como arcar com essa responsabilidade, e se dela me afasto, não é por teimosia, ego, modéstia ou doença, é porque o teatro me parece mais interessante, antes preferindo as mentiras essenciais – as que revelam as verdades essenciais -, do que a verdade comezinha, essa que esgota os humores logo no primeiro encontro...

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