A Esquina do Ajuntamento é aquele cotovelo urbano formado
pelo entroncamento espontâneo entre as ruas Deixa Disso e Não Há de Ser Nada,
batizando um curioso polo magnético de atração responsável por cooptar qualquer
pessoa, seja ela um pobre diabo ou alguém gabaritado nas artes da
intelectualidade, para o centro dos seus domínios, que compreendia um pequeno
bloco de concreto elevado, uma ilha de cimento, justamente no ponto em que a
Deixa Disso cumprimentava com a Não Há de Ser Nada, mas que, uma vez unidas,
uniam também quem pelas redondezas se aventurasse. Pois foi o que aconteceu com
o pipoqueiro Josias, que ao passar com o seu carrinho pelas fronteiras já
citadas, imediatamente sentiu-se no dever de abandonar seu ganha pão de
rodinhas e montar território na ilha de concreto, ficando lá, sem nada fazer, a
olhar o ritmo sem sentido da cidade onde não escolhera nascer. Cena essa,
porém, igualmente compartilhada e executada, senão da mesmíssima forma, também
com a mesma gana e ímpeto, pela cabeleireira Moira, que fizera cair alguns bobs
da própria cabeça no instante em que saiu correndo sem qualquer motivo aparente
e bastante desvairada – diria quem a visse! - para se juntar ao pipoqueiro Josias,
ambos agora dividindo a ilha de concreto, dois náufragos fincando bandeira
nesse ínfimo terreno ao qual habituou-se chamar de Esquina do Ajuntamento. E lá
foram eles dois, Josias e Moira, a circular o quarteirão em passos ritmados e
decididos após aquele instante de hesitação típico dos únicos momentos sinceros
que nos escapam a nossa fingida qualidade humana, pois era justamente essa a
regra imposta peremptoriamente pela Esquina do Ajuntamento: uma vez ajuntados,
seus correligionários saiam numa breve passeata pelos entornos do quarteirão,
e, ao voltarem ao ponto de partida, ou seja, na intersecção da Deixa Disso com
a Não Há de Ser Nada, cada qual retornava ao que estava fazendo antes de
haverem sido abduzidos pelo campo magnético daquele curioso cotovelo urbano. E
assim a coisa foi aumentando de tamanho, com cada vez mais gente imantada
àquela extravagante experiência de não se saber o porquê de tanta aptidão para
se cheirar o sovaco do vizinho, mas que, importante dizer, ganhava também ares
de poesia reivindicatória, já que na medida em que o número de sócios da causa
crescia, as passeatas tornavam-se mais barulhentas e, com o advento das frases
de efeito – coisas do tipo: ‘o povo unido jamais será vencido’ -, a Esquina do
Ajuntamento configurou-se como um importante polo sindical do que quer que
seja, mesmo quando não havia sindicato algum para representar. Em meio a
pancadas e bandeiras flamejantes, houve quem arriscasse a se vestir com
figurinos espalhafatosos, exatamente como o fez o atendente de telemarketing
Clóvis, fato que ficou gravado na história como o início dos desfiles das
escolas de samba, porque imediatamente depois de Clóvis, o atendente de
telemarketing, muitos outros pegaram carona nessa singular prática de gritar,
marchar e se mostrar com plumas e paetês, havendo, inclusive, uma natural
estratificação entre aqueles que desfilavam, ou seja, os atores, e os outros,
aqueles que sabe-se lá porquê raios do destino receberam o direito de julgar
quem era mais bem preparado para fazer jus ao asfalto em que se pisava. Ocorre
que foi desse período de efervescência da Esquina do Ajuntamento que se
noticiou a primeira investida agressiva de um bando inconformado com a massa
sapateadora, fato que gerou uma pancadaria sem precedentes, entrando para os
anais da cidade como a inauguração da força policial, órgão hoje muito atuante
em toda e qualquer esquina, não só a Do Ajuntamento. Pois assim se deu e assim
continua a funcionar: caso esteja flanando publicamente, saiba que a coceira
que lhe der em algum lugar do corpo, clamando sua adesão para o comparecimento
em qualquer parada que possa haver, tal comichão de engajamento público é fruto
disso que começou lá atrás com o pipoqueiro Josias e a cabeleireira Moira, num tempo
em que a Não Há de Ser Nada encontrou-se sem querer com a Deixa Disso,
produzindo sem ambição maior esse famoso bloco elevado de concreto de material
altamente sedutor, coisa sem precedentes, e até hoje visitada como o primeiro
lugar de muitos outros, onde os homens tomaram por direito e dever o sentido de
sair por aí batendo os pés, ora para festejar, ora para gritar, ora para não
fazer outra coisa senão isso: se ajuntar e pronto acabou!
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