quarta-feira, 30 de abril de 2014

# Considerações finais e pedidos de respeito acerca da terrível intercorrência ocorrida com Ermílio-dos-Pelos...


E se fosses tu, pergunto, que a exemplo de Ermílio-dos-Pelos houvesse de repente acordado com as barbas enroladas ao pescoço, evocando as personagens bíblicas num milagre ao contrário, antes pecado que redenção, coisa capaz de castigar o pior dos infiéis não nas paragens do além abstrato, mas bem aqui, no enredo funesto da vida que tem mais de ingrata e imprevisível do que produto empacotado da justa soma das virtudes? Pois embora Ermílio-dos-Pelos revolvesse a memória em busca de algum vitupério consagrador da sua terrível desgraça, algo que sob o olhar vigilante do Todo Poderoso evocasse tamanho saldo de infortúnio, ainda assim, conjecturando crimes imaginários não perpetrados, falências do caráter que ele não tinha no seu curríclum cristão, o fato era que ele, Ermílio-dos-Pelos, fora dormir liso como garoto propaganda das lâminas Gilette, acordando mais peludo e amarrado pelas barbas que um gladiador medieval, castigado nas catacumbas ao ser atado ao próprio leito por cordas denunciadoras da sua covardia em ter poupado matar o oponente no instante final da luta da véspera, recusa altruística aos louros da consagração do público e imperador. Portanto, caro leitor, gostaria de um pouco mais de compaixão da tua parte, todo aí a regalar-te em torções sádicas dos lábios, insensível aos dissabores alheios de méritos imerecidos, incapaz de catapultar-te para a pele deste homem que se hoje é barbudo - quem o sabe porquê? – também é vítima – quem o sabe por onde? – de alguma maldição que o ameaça esganar a vida por bigodes afora. Sim, porque também os bigodes, além da barba, armaram-lhe emboscada cruel, imobilizando ambas as mãos que uma vez livres poderiam duelar com os fios do queixo, todos eles firmes na tarefa de apertar a goela do próprio dono em questão, o nosso infeliz Ermílio-dos-Pelos. Ciente de tal situação vexatória, emplumado leitor, gostaria fortemente que não houvesse da tua parte alguma censura prévia frente ao que se ouviu sair da boca de Ermílio-dos-Pelos, porque não estando tu na beirada de semelhante abismo muito fácil seria condenar toda e qualquer praga proferida, emendada por palavrões gordos e afamados, exigindo dos tribunais do caráter público algum tipo de retratação ao tropel de artilharia difamatória enfileirada em agonia por Ermílio-dos-Pelos, cônscio de que não havendo qualquer possibilidade de salvação melhor seria deixar como herança algumas ondas vibratórias carregadas no sentimento de injustiça ao qual nosso personagem tornara-se injustificável vítima. Tendo a sorte tu, leitor, de continuares vivo – ou azar, vai saber? – e sabendo agora por esse narrador isento de julgamentos sarcásticos que Ermílio-dos-Pelos já não mais se encontra entre nós para testemunhar sua versão sobre os fatos, cabe a mim rogar-te mais uma vez que respeite esse instante que agora se faz visível lá na beirada do horizonte chuvoso, quando o sino que agora digo tocar anuncia a marcha fúnebre em que embala os passos cabisbaixos daqueles poucos amigos que resolveram comparecer para carregar o caixão nada nobre em que Ermílio-dos-Pelos escolhera por vontade não sua deitar-se para nunca mais acordar. E para dar a Emílio-dos-Pelos um pouco mais de conforto, tentando fazer com que esse instante final lhe devolva alguma espécie de alívio que em vida não lhe outorgaram desfrutar, peço-te, encarniçado leitor, que cales a matraca nem que seja por um tiquinho só, diminuindo o zum-zum-zum desse mundo de ruídos blasfematórios para, uma vez mudos, terminarmos ambos, eu e tu, em silêncio, conferindo ao murmúrio inaudito da nossa memória a lembrança feliz dos instantes de celebração que pudemos ter ao lado deste que agora se vai, ontem liso e altivo, hoje peludo e morto sepulto.

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