segunda-feira, 21 de abril de 2014

# O Surgimento do palquinho de madeira de sarrafos envergados...


No início era um grande teatro, com um palco espaçoso o suficiente para comportar histórias de igual tamanho. Dizia-se que cabia o mundo inteiro naquele teatro, tal era a generosidade das suas tábuas que rangiam de prazer quando sobre elas os atores tomavam emprestadas as mais lindas palavras dos poetas e dramaturgos. As cortinas do teatro, nos tempos áureos em que se abriam toda santa noite, nunca eram desprezadas, ao contrário!, eram parte fundamental da ocasião mágica. Seja lá qual fosse a história, as cortinas de veludo vermelho escondiam dos espectadores o que estava por vir como numa cerimônia em que o mistério é tempero decisivo para que o amante conquiste a sua pretendente. Depois dos três sinais, acionadas manualmente por algum maquinista desconhecido cujo nome nunca figurou nos cartazes, as cortinas de veludo vermelho arrastavam lentamente as suas franjas pela superfície do palco, cada metade para o seu lado, produzindo um ruído feito assobio agudo de engrenagem falha mas que povoava de imaginação as cabeças da platéia. Não raro o tempo parava quando as cortinas do teatro se abriam tingindo o espaço com formas e cores extravagantes. Ainda que não houvesse cenário algum atrás das cortinas, o próprio teatro na sua imensidão vazia já era suficiente para deslocar a plateia da realidade. Era, de fato, um vazio já vivido, repleto de fantasmas cerimoniosos por convidar os vivos para algo como um chá da tarde. Um cheiro de pó estagnado também contribuía para essa sensação de que aquele teatro em questão era velho de guerra, há anos prestando-se ao ofício de não servir para nada a não ser ao trabalho de calar as vozes da rua, e ceder aos atores a responsabilidade por contar histórias já escritas. Decorrido o tempo em que os atores desempenhavam sua função, as cortinas de veludo vermelho iniciavam o seu caminho de volta, cumprimentando-se no centro do palco para determinar o final do espetáculo. Aplausos não havia. Artista nenhum desmontava sua máscara de personagem para, com o rosto nu, aparecer frente aos espectadores. O teatro tinha essa qualidade de sumiço. Ninguém conferia se a bailarina, depois de rodopiar no pequeno estrado circular, continuava lá ao fechar a tampa da caixinha de música. Sabia-se que ela estava lá, e voltaria na próxima ocasião em que alguém quisesse novamente desfrutar da sua performance. Mas quem era a tal da bailarina, como ela se chamava, que cara tinha ela fora da sua função de bailarina, não, a isso não se dava crédito, ao contrário, preservava-se ao máximo a sombra de quem sumia por trás das personagens numa equação semelhante àquelas em que as crianças sabem que o monstro não existe de verdade, mas ainda assim preferem não investigar a fundo para não desmascarar de vez aquele último fio de esperança de que o perigo está a espreita. Era uma vez um teatro que não existe mais. Acabou-se aos poucos. Venderam as cortinas de veludo vermelho para servir de colcha aos sofás de antiquários, e das tábuas restaram apenas alguns sarrafos envergados que alguém lembrou de preservar. Na praça da cidade, no meio da rua, ergueu-se um palquinho de madeira de sarrafos envergados. Alguém galgou a sua precária estrutura e lá de cima contou uma piada. Imediatamente uma multidão se aglutinou ao redor daquele que inadvertidamente resolveu caçoar do mundo. Tanto fez sucesso que o seu exemplo foi seguido, tornando aquele palquinho de madeira de sarrafos envergados o ponto de reunião da cidade de Mequetrefes. Aplausos brotavam por todos os lados e rapidamente o contador de piadas ficou mais importante do que a própria piada contada, sendo ele obrigado a posar para fotos e reservar tempo para assinar autógrafos. As autoridades, felizes com a iniciativa do palquinho de madeira de sarrafos envergados, tomaram para si os méritos de haver triplicado o público do teatro na cidade, antes circunscrito a uns poucos teimosos que frequentavam o antigo prédio que cheirava a mofo e nada contribuía para os ares de modernidade otimista de Mequetrefes. E assim, hoje em dia, pode-se ver uma quantidade infinita de palquinhos de madeira de sarrafos envergados a brotar por cada esquina, cada qual lotado de espectadores bajuladores, já sorridentes antes mesmo de ouvir qualquer piada, alvos fáceis dos vaidosos que por alguma obra do destino resolveram fazer da sua própria intimidade extrovertida motivo de aparição pública e rentabilidade.  


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