quinta-feira, 24 de julho de 2014

Fábulas: # O cinema (primo rico) e o teatro (primo pobre)


Bem lá no entroncamento das duas principais vias engarrafadas da cidade jazia uma fachada de luzes cintilantes a se escorar poucos metros adentro da calçada. Era um cinema. E acabara de ser reaberto. Multidões em romaria testavam penitências várias esperando a vez de entrar para ver um filminho clássico, um possível reencontro com Marlon Brando em plena e vigorosa forma, e depois de tanto tempo de breu misturado ao silêncio das telas. Sim, porque essa era uma praxe recorrente do tal cinema: a de tempos em tempos entrar em crise para morrer, baixando as portas para nunca mais. Mas nunca mais é sempre muito tempo, então lá vinha uma nova procissão de fiéis devedores à sétima arte fazer pressão para que as dívidas fossem saldadas e o tal cinema voltasse a respirar com sua fachada de luzes cintilantes bem lá no entroncamento das duas principais vias engarrafadas da cidade. E assim se dava, e o cinema reabria. E Marlon Brando, Bette Davis, Kubrick e outros tantos voltavam também. Mas só para sumir de novo lá na frente em um quando que ninguém sabia. A data original da inauguração do cinema era matéria de mistério absoluto, só se tinha em conta que era lá pelos anos distantes embalados pela certeza de que os que hoje vivem ainda não viviam. Não tão distante dali, recostado em outra fachada, dessa vez de categoria suspeita por não haver sequer uma única luz faiscante a convidar o interesse do mais atento dos transeuntes, o ator Norberto Quadros fumava um cigarro antes do início do espetáculo. O teatro era coisa ainda mais antiga que o vizinho cinema, e se nunca havia imitado a via crúcis de exéquias fúnebres do companheiro ao lado para depois e em seguida ressuscitar glorioso aos olhos do público, era porque morria todo santo dia, sem direito a festas ou lamentações de qualquer ordem. Morria e pronto. Sem direito também a Marlon Brando, Bette Davis ou quem quer que seja. Junto com o teatro morriam os atores, espectadores, e todo o contingente de dramaturgos, cenógrafos, figurinistas, sonoplastas, maquiadores e iluminadores. Talvez seja por isso que o teatro mereça sempre um pouco menos de atenção, porque as suas mortes não são estratégia de propaganda, e sim destino constante... e mais do que obrigatório.

 Bem lá, perto do entroncamento das duas principais vias engarrafadas da cidade, e quase ao lado da fachada de luzes cintilantes, jazia quieto um teatro, que morrendo todo dia, não morria nunca.

...




...         

Nenhum comentário:

Postar um comentário