O sr. Dutra acordou com um bigodão acima dos lábios, uma
verdadeira taturana peluda a lhe roçar a ponta adunca do nariz de meia idade.
Forçou a memória na tentativa de lembrar se na véspera não havia barbeado a
face, mas logo atinou que ainda que o tivesse esquecido, o bigodão agora visto
era coisa de semanas, meses, quiçá décadas de semeadura sem poda. Talvez uma
piada? Avançou com os dedos para arrancar o bigodão concluindo com um sorriso
que algum matreiro fora o autor da travessura, colando o dito cujo cabeludo enquanto
dormia. Era verdadeiro. O bigodão lhe pertencia, como também lhe pertencia cada
parte do corpo. Desceu as escadas até a cozinha na esperança de que a esposa
pudesse encontrar alguma explicação para o curioso fato, e foi quando percebeu
que ela própria, Lucrécia, ostentava um bigodão exatamente igual ao seu, toda
ela compelida em despejar o café na xícara sem prestar qualquer resistência
àquilo que a ele parecia absurdo e sem razão. Atônito, o sr. Dutra sentou-se e
esboçou um início de assunto que sugerisse o assombro de encontrar a si próprio
e a mulher portando um bigodão peludo feito taturana debaixo do nariz, e foi
quando percebeu que a filhinha, Anabela, do outro lado da mesa e até então
silenciosa, mirava o pai numa composição de olhos arregalados, bochechinhas
roseadas, e... um bigodão bem debaixo do seu narizinho de menina levada. O sr.
Dutra, meio tonto meio descrente, saiu para a rua. Cada um que lhe atravessasse
o caminho levava junto outro bigodão debaixo do nariz. Fosse uma velha, um
executivo, um mendigo ou quem quer que seja, todos, sem exceção, estampavam a
mesma marca peluda e indelével pregada ao rosto anônimo. Após um dia de trabalho
extenunate, e sempre misturando o seu bigode aos bigodes alheios, o sr. Dutra
voltou para casa. A visão da família feliz, brincando enquanto o pai não
chegava, amenizou aquela sensação hamletiana de que o mundo está fora dos
eixos, e ainda que o bigodão lhe causasse certo incômodo na hora de sorver a
sopa, uma certa consciência prática o salvou de entrar em crise completa, ajeitando
os lábios para uma melhor embocadura sem mais creditar ao bigodão o motivo
central de sua angústia; afinal, qual é o problema de um dia acordar com um
bigodão acima dos lábios, uma verdadeira taturana peluda a lhe roçar a ponta
adunca do nariz de meia idade? Chegou mesmo a se divertir com a filhinha
Anabela cofiando seus bigodões no instante em que esperava ansiosa pela mãe,
outra portadora do suntuoso bigodão, lhe servir uma colherada de doce de
abóbora para a sobremesa. E agora, com as horas já avançadas, vemos Lucrécia,
esposa do sr. Dutra, que antes de dormir inclui mais uma ação ao seu já
demorado ritual de cuidados estéticos noturnos, a saber, um meticuloso desembaraçar de fios negros e grossos, não sem antes ter besuntado de creme
hidratante aquela massa polpuda feito taturana, coisa herdada sabe-se lá de
quem, e que tampouco importa saber. O sr. Dutra, há tempos entregue ao sono,
ronca em plenos pulmões. Parece feliz.
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