sábado, 2 de agosto de 2014

Fábulas: # O bigodão do sr. Dutra


O sr. Dutra acordou com um bigodão acima dos lábios, uma verdadeira taturana peluda a lhe roçar a ponta adunca do nariz de meia idade. Forçou a memória na tentativa de lembrar se na véspera não havia barbeado a face, mas logo atinou que ainda que o tivesse esquecido, o bigodão agora visto era coisa de semanas, meses, quiçá décadas de semeadura sem poda. Talvez uma piada? Avançou com os dedos para arrancar o bigodão concluindo com um sorriso que algum matreiro fora o autor da travessura, colando o dito cujo cabeludo enquanto dormia. Era verdadeiro. O bigodão lhe pertencia, como também lhe pertencia cada parte do corpo. Desceu as escadas até a cozinha na esperança de que a esposa pudesse encontrar alguma explicação para o curioso fato, e foi quando percebeu que ela própria, Lucrécia, ostentava um bigodão exatamente igual ao seu, toda ela compelida em despejar o café na xícara sem prestar qualquer resistência àquilo que a ele parecia absurdo e sem razão. Atônito, o sr. Dutra sentou-se e esboçou um início de assunto que sugerisse o assombro de encontrar a si próprio e a mulher portando um bigodão peludo feito taturana debaixo do nariz, e foi quando percebeu que a filhinha, Anabela, do outro lado da mesa e até então silenciosa, mirava o pai numa composição de olhos arregalados, bochechinhas roseadas, e... um bigodão bem debaixo do seu narizinho de menina levada. O sr. Dutra, meio tonto meio descrente, saiu para a rua. Cada um que lhe atravessasse o caminho levava junto outro bigodão debaixo do nariz. Fosse uma velha, um executivo, um mendigo ou quem quer que seja, todos, sem exceção, estampavam a mesma marca peluda e indelével pregada ao rosto anônimo. Após um dia de trabalho extenunate, e sempre misturando o seu bigode aos bigodes alheios, o sr. Dutra voltou para casa. A visão da família feliz, brincando enquanto o pai não chegava, amenizou aquela sensação hamletiana de que o mundo está fora dos eixos, e ainda que o bigodão lhe causasse certo incômodo na hora de sorver a sopa, uma certa consciência prática o salvou de entrar em crise completa, ajeitando os lábios para uma melhor embocadura sem mais creditar ao bigodão o motivo central de sua angústia; afinal, qual é o problema de um dia acordar com um bigodão acima dos lábios, uma verdadeira taturana peluda a lhe roçar a ponta adunca do nariz de meia idade? Chegou mesmo a se divertir com a filhinha Anabela cofiando seus bigodões no instante em que esperava ansiosa pela mãe, outra portadora do suntuoso bigodão, lhe servir uma colherada de doce de abóbora para a sobremesa. E agora, com as horas já avançadas, vemos Lucrécia, esposa do sr. Dutra, que antes de dormir inclui mais uma ação ao seu já demorado ritual de cuidados estéticos noturnos, a saber, um meticuloso desembaraçar de fios negros e grossos, não sem antes ter besuntado de creme hidratante aquela massa polpuda feito taturana, coisa herdada sabe-se lá de quem, e que tampouco importa saber. O sr. Dutra, há tempos entregue ao sono, ronca em plenos pulmões. Parece feliz.


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