domingo, 18 de janeiro de 2015

Pequena Ladainha dos Tempos Sombrios...


Ninguém ali dignava-se a puxar o gatilho. Puxar o gatilho seria por demais sórdido. É o que diz a convenção dos direitos civis e humanos: nunca, em hipótese alguma, puxar o gatilho. Mas ocorre que o gatilho fora puxado. Alguém puxou o gatilho. E depois vieram a descobrir, ou antes já era sabido, que o alvo do gatilho fizera por merecer sua sentença, ainda que seja, evidentemente, deplorável alguém que tenha esse abjeto impulso de puxar o gatilho. Mas já que o gatilho fora puxado, e que o alvo do gatilho, como já se sabe, alguma coisa fez para o merecer, todos ali, então, e numa atitude de absoluta solidariedade piedosa, evocaram quantos semelhantes anônimos são alvos de quantos gatilhos também anônimos sem que o mereçam, e que, pior ainda, ninguém ali, por mais indignação que tivessem acumulado durante a vida, havia, de fato, voltado os olhos para esses que, contrários àquele que merecera ser alvo do gatilho - ainda que puxar o gatilho fosse uma atitude altamente indigna -, não tiveram a mesma complacência e lágrimas nos olhos. Imbuídos dessa dor enternecedora e solidária, todos ali, num gesto de absoluta justiça coletiva, deram-se as mãos e, desavisadamente, pisaram no corpo já sem vida daquele que há instantes havia sido alvo do gatilho puxado. Mas ainda que o tivessem visto ali, todo estatelado e sem vida ao chão, não haveria, imagino eu, problema algum em o ter pisado conscientemente, afinal, ele o fizera por merecer ter sido alvo do gatilho puxado como de fato o fora, uma vez que algo em seu passado o denunciava a semelhante sentença, e ainda que, evidentemente, seja algo cruel e desumano alguém dignar-se a audácia de, numa atitude de completa insensibilidade, ter a coragem de puxar o gatilho, como de fato alguém fizera, aquele que agora jazia sem vida ao chão era, de fato, um pobre diabo que não merecia outro destino senão aquele, e que, enfim, pisá-lo era quase um gesto de absoluta hombridade por parte daqueles que, em memória de tantos sofredores anônimos cujas vidas haviam sido ceifadas em vão, mal puderam contar com semelhante complacência e lágrimas nos olhos.

Rezaram. Fizeram um minuto de silêncio. E foram embora. Exceto o fuzilado, que a despeito de tudo, preferiu por ali dar mais um tempo.

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