segunda-feira, 16 de março de 2015

Fábulas: # A convocação para que ninguém fosse...

Havia sido marcado um ato público convocando toda a população a não comparecer. Que ninguém fosse, porque ninguém indo, e somente dessa forma, a pressão ao governo seria deveras incisiva, obrigando-o finalmente a ouvir os clamores populares, naquela altura já nos limites da goela revoltada. E ninguém foi. E por ninguém ter ido - o vazio das ruas chegou a ser comparado às cercanias da usina nuclear de Chernobil -,  o sucesso fora retumbante, avassalador. Que lindo de ver! Não se via ninguém, nenhuma viva alma! E mediante a tamanha adesão em massa seguiu-se a mais óbvia conclusão: o orgulho patriótico havia atingido o cume estratosférico daquilo que se esperava de uma nação democrática, espargiu por cada esquina desértica, amalgamando à todos nessa curiosa ciranda da solidariedade que só brota naqueles instantes de crise suprema onde o ser humano, piedoso ao seu irmão de augúrio, oferece ajuda ao vizinho de infortúnio. 'Não esmoreceremos' - era o grito que ninguém gritava! 'Viva o Povo' - era a faixa que não se via! Que lindo tudo aquilo! Um verdadeiro hino calado em louvor coletivo! Pois ninguém foi. E não havendo ninguém, nada fora discutido, nenhum carro de som com ninguém em cima a gritar palavras de ordem, um tapa na cara do partido da situação, e, decisivamente, a arrancada da oposição. E como nada se discutiu - um alfinete derrubado no piche do asfalto chegou produzir um eco de ferir os tímpanos -, e não havendo debate algum, não se chegou, portanto, a nenhuma conclusão, o que já era, efetivamente, a melhor das conclusões a que se poderia esperar chegar num evento dessa magnitude. E como resultado de nada, nada foi feito. E o governo capitulou - o clamor não aclamado surtiu seu efeito. E ninguém comemorou. E as ruas já voltam agora a abarrotarem-se. Mas só até a próxima convocação pública. Que orgulho desses meus pares! Que orgulho de meu país! Gente honesta e de compromissos de princípios ilibados e irrevogáveis! 


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